VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
AOS EMIRADOS ÁRABES UNIDOS
(3-5 DE FEVEREIRO DE 2019)
ENCONTRO INTER-RELIGIOSO
DISCURSO DO SANTO PADRE
Founder’s Memorial (Abu Dhabi)
Segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019
Al Salamò Alaikum! A paz esteja convosco!
De coração agradeço a Sua Alteza o Xeque Mohammed bin Rashid Al Maktoum e ao Doutor Ahmad Al-Tayyib, Grande Imã de Al-Azhar, pelas suas palavras. Estou grato ao Conselho dos Anciãos pelo encontro que acabamos de ter na Mesquita do Xeque Zayed.
Saúdo cordialmente também o Senhor Abd Al-Fattah Al-Sisi, Presidente da República Árabe do Egito, terra de Al-Azhar. Saúdo cordialmente as Autoridades civis e religiosas e o Corpo Diplomático. Permitam-me também um sincero obrigado pela calorosa receção que todos reservaram a mim e à nossa delegação.
Agradeço também a todas as pessoas que contribuíram para tornar possível esta viagem e que trabalharam com dedicação, entusiasmo e profissionalismo para este evento: os organizadores, o pessoal do Protocolo, o da Segurança e todos aqueles que, nos «bastidores», de várias maneiras deram a sua contribuição. Um agradecimento particular ao Senhor Mohammed Abdel Salam, ex-conselheiro do Grande Imã.
Daqui, da vossa pátria, dirijo-me a todos os países desta Península, saudando-os cordialmente com respeito e amizade.
De ânimo reconhecido ao Senhor, aproveitei o ensejo do VIII centenário do encontro entre São Francisco de Assis e o sultão al-Malik al-Kamil para vir aqui como crente sedento de paz, como irmão que procura a paz com os irmãos. Desejar a paz, promover a paz, ser instrumentos de paz: para isto, estamos aqui.
O logotipo desta viagem representa uma pomba com um ramo de oliveira. É uma imagem que nos traz à memória a narração do dilúvio primordial, presente em várias tradições religiosas. Segundo a narração bíblica, para preservar a humanidade da destruição, Deus pede a Noé para entrar na arca com a sua família. Hoje também nós, em nome de Deus, para salvaguardar a paz, precisamos de entrar juntos, como uma única família, numa arca que possa sulcar os mares tempestuosos do mundo: a arca de fraternidade.
O ponto de partida é reconhecer que Deus está na origem da única família humana. Criador de tudo e de todos, quer que vivamos como irmãos e irmãs, morando nesta casa comum da criação que Ele nos deu. Funda-se aqui, nas raízes da nossa humanidade comum, a fraternidade como «vocação contida no desígnio criador de Deus».[1] Esta fraternidade diz-nos que todos temos igual dignidade, pelo que ninguém pode ser dono ou escravo dos outros.
Não se pode honrar o Criador sem salvaguardar a sacralidade de cada pessoa e de cada vida humana: cada um é igualmente precioso aos olhos de Deus. Com efeito, Ele não olha a família humana com um olhar de preferência que exclui, mas com um olhar de benevolência que inclui. Por isso, reconhecer os mesmos direitos a todo o ser humano é glorificar o Nome de Deus na terra. Assim, em nome de Deus Criador, é preciso condenar, decididamente, qualquer forma de violência, porque seria uma grave profanação do Nome de Deus utilizá-Lo para justificar o ódio e a violência contra o irmão. Religiosamente, não há violência que se possa justificar.
Inimigo da fraternidade é o individualismo, que se traduz na vontade de eu mesmo e o meu próprio grupo nos sobrepormos aos outros. Trata-se duma insídia que ameaça todos os aspetos da vida, mesmo a mais alta e inata prerrogativa do homem que é a abertura ao transcendente e a religiosidade. A verdadeira religiosidade consiste em amar a Deus de todo o coração e ao próximo como a si mesmo. Por isso, a conduta religiosa precisa de ser continuamente purificada duma tentação frequente: considerar os outros como inimigos e adversários. Cada credo é chamado a superar o desnível entre amigos e inimigos, assumindo a perspetiva do Céu que abraça os homens sem privilégios nem discriminações.
Desejo, pois, expressar apreço pelo compromisso deste país em tolerar e garantir a liberdade de culto, contrapondo-se ao extremismo e ao ódio. Assim procedendo, ao mesmo tempo que se promove a liberdade fundamental de professar o próprio credo, exigência intrínseca na própria realização do homem, vela-se também para que a religião não seja instrumentalizada e corra o risco de, admitindo violência e terrorismo, se negar a si mesma.
É certo que, «apesar de os irmãos estarem ligados por nascimento e possuírem a mesma natureza e a mesma dignidade, a fraternidade exprime também a multiplicidade e a diferença que existe entre eles».[2] Expressão disso mesmo é a pluralidade religiosa. Neste contexto, a atitude correta não é a uniformidade forçada nem o sincretismo conciliador: o que estamos chamados a fazer como crentes é trabalhar pela igual dignidade de todos em nome do Misericordioso, que nos criou e em cujo Nome se deve buscar a composição dos contrastes e a fraternidade na diversidade. Gostaria, aqui, de reiterar a convicção da Igreja Católica, segundo a qual «não podemos invocar Deus como Pai comum de todos, se nos recusamos a tratar como irmãos alguns homens, criados à sua imagem».[3]
No entanto, várias questões se impõem: Como salvaguardar-nos mutuamente na única família humana? Como alimentar uma fraternidade que não seja teórica, mas se traduza em autêntica união? Como fazer prevalecer a inclusão do outro sobre a exclusão em nome da própria afiliação? Enfim, como podem as religiões ser canais de fraternidade em vez de barreiras de separação?
A família humana e a coragem da alteridade
Se acreditamos na existência da família humana, segue-se daí que a mesma, enquanto tal, deve ser salvaguardada. Como se verifica em cada família, consegue-se isso, antes de mais nada, através dum diálogo diário e efetivo. Isto pressupõe a própria identidade, a que não se deve abdicar para agradar ao outro; mas, ao mesmo tempo, requer a coragem da alteridade,[4] que supõe o pleno reconhecimento do outro e da sua liberdade com o consequente compromisso de me gastar para que os seus direitos fundamentais sejam respeitados sempre, em toda parte e por quem quer que seja. Com efeito, sem liberdade, já não se é filho da família humana, mas escravo. E. dentre as liberdades, gostaria de salientar a liberdade religiosa. Esta não se limita à mera liberdade de culto, mas vê no outro verdadeiramente um irmão, um filho da minha mesma humanidade, que Deus deixa livre e, por conseguinte, nenhuma instituição humana pode forçar, nem mesmo em nome d’Ele.
O diálogo e a oração
A coragem da alteridade é a alma do diálogo, que se baseia na sinceridade de intenções. Com efeito, o diálogo é comprometido pelo fingimento, que aumenta a distância e a suspeita: não se pode proclamar a fraternidade e, depois, agir em sentido oposto. Segundo um escritor moderno, «quem mente a si mesmo e escuta as próprias mentiras, chega ao ponto de já não ser capaz de distinguir a verdade dentro de si mesmo nem ao seu redor e, assim, começa a perder a estima por si mesmo e pelos outros».[5]
Em tudo isto, é indispensável a oração: esta, ao mesmo tempo que encarna a coragem da alteridade em relação a Deus, na sinceridade da intenção, purifica o coração de fechar-se em si mesmo. A oração feita com o coração é um restaurador de fraternidade. Por isso, «quanto ao futuro do diálogo inter-religioso, a primeira coisa que devemos fazer é rezar. E rezar uns pelos outros: somos irmãos! Sem o Senhor, nada é possível; com Ele, tudo se torna possível! Possa a nossa oração – cada um segundo a sua tradição – aderir plenamente à vontade de Deus, o Qual deseja que todos os homens se reconheçam irmãos e vivam como tais, formando a grande família humana na harmonia das diversidades».[6]
Não há alternativa: ou construiremos juntos o futuro ou não haverá futuro. De modo particular, as religiões não podem renunciar à tarefa impelente de construir pontes entre os povos e as culturas. Chegou o tempo de as religiões se gastarem mais ativamente, com coragem e ousadia e sem fingimento, por ajudar a família humana a amadurecer a capacidade de reconciliação, a visão de esperança e os itinerários concretos de paz.
A educação e a justiça
E voltamos, assim, à imagem inicial da pomba da paz. Também a paz, para levantar voo, precisa de asas que a sustentem: as asas da educação e da justiça.
A educação – educere, em latim, significa extrair, tirar fora – é trazer à luz os preciosos recursos da alma. É consolador verificar como, neste país, não se investe apenas na extração dos recursos da terra, mas também nos recursos do coração, na educação dos jovens. É um compromisso que almejo possa continuar e difundir-se por outros lados. A própria educação tem lugar na relação, na reciprocidade. À famosa máxima antiga «conhece-te a ti mesmo», devemos juntar «conhece o irmão»: a sua história, a sua cultura e a sua fé, porque, sem o outro, não há verdadeiro conhecimento de si mesmo. Como homens e mais ainda como irmãos, lembremos uns aos outros que nada do que é humano nos pode ficar alheio.[7] Em ordem ao futuro, é importante formar identidades abertas, capazes de vencer a tentação de se fechar em si mesmas e empedernir-se.
Investir na cultura favorece a diminuição do ódio e o aumento da civilidade e prosperidade. Educação e violência são inversamente proporcionais. As instituições católicas – apreciadas também neste país e na região – promovem tal educação para a paz e compreensão mútua para prevenir a violência.
Cercados frequentemente por mensagens negativas e notícias falsas, os jovens precisam de aprender a não ceder às seduções do materialismo, do ódio e dos preconceitos, a reagir à injustiça e também às experiências dolorosas do passado e a defender os direitos dos outros com o mesmo vigor com que defendem os próprios. Um dia, serão eles a julgar-nos: bem, se lhes tivermos dado bases sólidas para criar novos encontros de civilidade; mal, se lhes tivermos deixado apenas miragens e a desoladora perspetiva de nefastos conflitos de incivilidade.
A justiça é a segunda asa da paz; com frequência, esta não é comprometida por episódios individuais, mas é lentamente devorada pelo câncer da injustiça.
Portanto, não se pode crer em Deus sem procurar viver a justiça com todos, como diz a regra de ouro: «O que quiserdes que vos façam os homens, fazei-o também a eles, porque isto é a Lei e os Profetas» (Mt 7, 12).
Paz e justiça são inseparáveis! Diz o profeta Isaías: «A paz será obra da justiça» (32, 17). A paz morre, quando se divorcia da justiça, mas a justiça revela-se falsa se não for universal. Uma justiça circunscrita apenas aos familiares, aos compatriotas, aos crentes da mesma fé é uma justiça claudicante… uma injustiça disfarçada!
As religiões têm também a tarefa de lembrar que a ganância do lucro torna néscio o coração e que as leis do mercado atual, ao exigir tudo e súbito, não ajudam o encontro, o diálogo, a família: dimensões essenciais da vida que precisam de tempo e paciência. Que as religiões sejam voz dos últimos – estes não são estatísticas, mas irmãos – e estejam da parte dos pobres; velem como sentinelas de fraternidade na noite dos conflitos, sejam apelos diligentes à humanidade para que não feche os olhos perante as injustiças e nunca se resigne com os dramas sem conta no mundo.
O deserto que floresce
Depois de ter falado da fraternidade como arca de paz, gostaria agora de me inspirar numa segunda imagem: o deserto, que nos envolve.
Aqui, com clarividência e sabedoria, em poucos anos o deserto foi transformado num lugar próspero e hospitaleiro; de obstáculo impérvio e inacessível que era, o deserto tornou-se lugar de encontro entre culturas e religiões. Aqui o deserto floresceu, não apenas durante alguns dias no ano, mas para muitos anos vindouros. Este país, em que se tocam areia e arranha-céus, continua a ser uma importante encruzilhada entre o Ocidente e o Oriente, entre o Norte e o Sul do planeta, um lugar de desenvolvimento, onde espaços outrora inóspitos proporcionam empregos a pessoas de várias nações.
Mas o desenvolvimento também tem os seus adversários. E, se o inimigo da fraternidade é o individualismo, como obstáculo ao desenvolvimento apontaria a indiferença, que acaba por converter as realidades florescentes em zonas desertas. De facto, um desenvolvimento puramente utilitarista não gera progresso real e duradouro. Só um desenvolvimento integral e coeso prepara um futuro digno do homem. A indiferença impede de ver a comunidade humana para além dos lucros, e ver o irmão para além do trabalho que faz. Com efeito, a indiferença não olha para o amanhã; não se importa com o futuro da criação, não cuida da dignidade do forasteiro nem do futuro das crianças.
Neste contexto, alegro-me com o facto de se ter realizado precisamente aqui em Abu Dhabi, em novembro passado, o primeiro Fórum da Aliança inter-religiosa por Comunidades mais seguras, dedicado ao tema da dignidade da criança na era digital. Este evento retomou a mensagem lançada um ano antes, em Roma, no Congresso internacional sobre o mesmo tema, ao qual dei todo o meu apoio e encorajamento. Agradeço, pois, a todos os líderes que estão empenhados neste campo e asseguro o apoio, a solidariedade e a participação da Igreja Católica nesta causa importantíssima da proteção dos menores em todas as suas expressões.
Aqui, no deserto, abriu-se um caminho de fecundo desenvolvimento que, a partir do trabalho, dá esperança a muitas pessoas de vários povos, culturas e credos. E, entre elas, contam-se também muitos cristãos, cuja presença na região remonta séculos atrás tendo contribuído significativamente para o crescimento e bem-estar do país. Além das próprias capacidades profissionais, trazem-vos a genuinidade da sua fé. O respeito e a tolerância que encontram, bem como os necessários lugares de culto onde rezam, permitem-lhes aquele amadurecimento espiritual que se traduz em benefício para a sociedade inteira. Encorajo-vos a continuar por este caminho, para que quantos vivem aqui ou estão de passagem conservem a imagem não só das grandes obras erguidas no deserto, mas também duma nação que inclui e abraça a todos.
É com este espírito que almejo, não só aqui mas em toda a amada e nevrálgica região do Médio Oriente, oportunidades concretas de encontro: sociedades onde pessoas de diferentes religiões tenham o mesmo direito de cidadania e onde só à violência, em todas as suas formas, se tire tal direito.
Uma convivência fraterna, fundada na educação e na justiça, e um desenvolvimento humano, construído sobre a inclusão acolhedora e sobre os direitos de todos, constituem sementes de paz, que as religiões são chamadas a fazer germinar. Cabe a elas neste delicado momento histórico, talvez como nunca antes, uma tarefa que não se pode adiar mais: contribuir ativamente para desmilitarizar o coração do homem. A corrida aos armamentos, o alargamento das respetivas zonas de influência, as políticas agressivas em detrimento dos outros nunca trarão estabilidade. A guerra nada mais pode criar senão miséria; as armas nada mais, senão morte!
A fraternidade humana impõe-nos, a nós representantes das religiões, o dever de banir toda a nuance de aprovação da palavra guerra. Restituamo-la à sua miserável crueza. Estão sob os nossos olhos as suas consequências nefastas. Penso em particular no Iémen, na Síria, no Iraque e na Líbia. Juntos, irmãos na única família humana querida por Deus, comprometamo-nos contra a lógica da força armada, contra a monetarização das relações, o armamento das fronteiras, o levantamento de muros, o amordaçamento dos pobres; oponhamos a tudo isto a força suave da oração e o empenho diário no diálogo. Que o nosso estar juntos hoje seja uma mensagem de confiança, um encorajamento a todos os homens de boa vontade para que não se rendam aos dilúvios da violência nem à desertificação do altruísmo. Deus está com o homem que procura a paz. E, do céu, abençoa cada passo que se realiza, neste caminho, sobre a terra.
[1] Bento XVI, Discurso aos novos Embaixadores junto da Santa Sé (16/XII/2010).
[2] Francisco, Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2015 (8/XII/2014), 2.
[3] Conc. Ecum. Vat. II, Decl. sobre as relações da Igreja com as religiões não-cristãs Nostra aetate, 5.
[4] Cf. Francisco, Discurso aos participantes na Conferência Internacional pela Paz (Al-Azhar
[5] F. Dostoiévski, Os irmãos Karamazov, II, 2 (Milão 2012), 60.
[6] Francisco, Audiência Geral inter-religiosa (28/X/2015).
[7] Cf. Terêncio, Heautontimorumenos I, 1, 25.
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