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DISCURSO DO PAPA FRANCISCO
À CÚRIA ROMANA PARA AS FELICITAÇÕES DE NATAL

Sala das Bênçãos
Segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

[Multimídia]


 

Queridos irmãos e irmãs!

1. O Natal de Jesus de Nazaré é o mistério dum nascimento que nos recorda que «os homens, embora tenham de morrer, não nasceram para morrer, mas para recomeçar», como observa de maneira clarividente e incisiva Hanna Arendt, a filósofa judia que inverte o pensamento do seu mestre Heidegger, segundo o qual o homem nasce para ser lançado na morte. Sobre as ruínas dos totalitarismos do século XX, Arendt reconhece esta verdade luminosa: «O milagre que preserva o mundo, a esfera das vicissitudes humanas, da sua ruína normal, “natural”, é em última instância o facto da natalidade. (…) É esta fé e esperança no mundo que encontra a sua expressão talvez mais gloriosa e eficaz nas poucas palavras com que o Evangelho anunciou a “feliz notícia” do advento: “Um menino nasceu para nós”».[1]

2. Perante o mistério da Encarnação, junto do Menino deitado numa manjedoura (cf. Lc 2, 16), bem como diante do Mistério Pascal, na presença do homem crucificado, só encontramos o lugar certo se nos apresentarmos desarmados, humildes, essenciais; só depois de termos realizado no meio onde vivemos – incluindo a Cúria Romana – o programa de vida sugerido por São Paulo: «Toda a espécie de azedume, raiva, ira, gritaria e injúria desapareça de vós, juntamente com toda a maldade. Sede, antes, bondosos uns para com os outros, compassivos; perdoando-vos mutuamente como também Deus vos perdoou em Cristo» (Ef 4, 31-32); só se estivermos «revestidos de humildade» (cf. 1 Ped 5, 5), imitando Jesus «manso e humilde de coração» (Mt 11, 29); só depois de nos termos colocado «no último lugar» (Lc 14, 10) e feito «servo de todos» (cf. Mc 10, 44). E a este respeito, nos seus Exercícios, Santo Inácio chega ao ponto de pedir que nos imaginemos no cenário do presépio, «fazendo-me eu – escreve – pobre e indigno servo que olha para eles, contempla-os e serve-os nas suas necessidades» (114, 2).

Agradeço ao Cardeal Decano as suas palavras de saudação neste Natal, nelas expressando os sentimentos de todos. Cardeal Re, obrigado!

3. Este Natal fica marcado pela pandemia, pela crise sanitária, pela crise económica, social e até eclesial que atingiu, sem distinções, o mundo inteiro. A crise deixou de ser um lugar-comum dos discursos e da elite intelectual para se tornar uma realidade partilhada por todos.

Este flagelo foi um teste considerável e, ao mesmo tempo, uma grande ocasião para nos convertermos e recuperarmos a autenticidade.

Em 27 de março passado, no Adro de São Pedro com a Praça aparentemente vazia mas na realidade estava cheia graças à pertença fraterna que nos acomuna nos vários cantos da terra, quando lá quis rezar por todos e com todos, tive ocasião de referir em voz alta o possível significado da «tempestade» (cf. Mc 4, 35-41) que se abatera sobre o mundo: «A tempestade desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades. Mostra-nos como deixamos adormecido e abandonado aquilo que nutre, sustenta e dá força à nossa vida e à nossa comunidade. A tempestade põe a descoberto todos os propósitos de “empacotar” e esquecer o que alimentou a alma dos nossos povos; todas as tentativas de anestesiar com hábitos aparentemente “salvadores”, incapazes de fazer apelo às nossas raízes e evocar a memória dos nossos idosos, privando-nos assim da imunidade necessária para enfrentar as adversidades. Com a tempestade, caiu a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso “eu” sempre preocupado com a própria imagem; e ficou a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos».

4. Precisamente neste tempo difícil, quis a Providência dar-me a possibilidade de escrever a encíclica Fratelli tutti, dedicada ao tema da fraternidade e da amizade social. E dos «evangelhos da infância», onde se narra o nascimento de Jesus, vem-nos uma lição, ou seja, a de uma nova cumplicidade – uma nova cumplicidade! – e união que se cria entre quantos são os seus protagonistas: Maria, José, os pastores, os magos e todos aqueles que, duma forma ou doutra, ofereceram a sua fraternidade, a sua amizade, para poder ser acolhido na escuridão da história o Verbo que Se fez carne (cf. Jo 1, 14).

Assim deixei escrito na referida encíclica: «Desejo ardentemente que, neste tempo que nos cabe viver, reconhecendo a dignidade de cada pessoa humana, possamos fazer renascer, entre todos, um anseio mundial de fraternidade. Entre todos: Aqui está um ótimo segredo para sonhar e tornar a nossa vida uma bela aventura. Ninguém pode enfrentar a vida isoladamente (...); precisamos duma comunidade que nos apoie, que nos auxilie e dentro da qual nos ajudemos mutuamente a olhar em frente. Como é importante sonhar juntos! (...) Sozinho, corres o risco de ter miragens, vendo aquilo que não existe; é juntos que se constroem os sonhos. Sonhemos como uma única humanidade, como caminhantes da mesma carne humana, como filhos desta mesma terra que nos alberga a todos, cada qual com a riqueza da sua fé ou das suas convicções, cada qual com a própria voz, mas todos irmãos» (Fratelli tutti, 8).

5. A crise da pandemia é ocasião propícia para uma breve reflexão sobre o significado da crise em si mesma, que nos possa ajudar a cada um.

A crise é um fenómeno que afeta tudo e todos. Presente por todo o lado e em cada período da história, envolve as ideologias, a política, a economia, a técnica, a ecologia, a religião. Trata-se duma etapa obrigatória da história pessoal e da história social. Manifesta-se como um facto extraordinário, que provoca sempre um sentimento de trepidação, angústia, desequilíbrio e incerteza nas opções a tomar. Como lembra a raiz etimológica do verbo krino, a crise é aquele crivo que limpa o grão de trigo depois da ceifa.

A própria Bíblia está povoada por pessoas que foram «passadas pelo crivo», por «personagens em crise», mas que, precisamente através dela, realizam a história da salvação.

A crise de Abraão, que deixa a sua terra (Gn 12, 1-2) e vive a grande prova de dever sacrificar a Deus o seu único filho (Gn 22, 1-19), é resolvida, do ponto de vista teologal, com o nascimento dum novo povo. Mas este nascimento não poupa Abraão de viver um drama onde a confusão e o desorientamento só não prevaleceram graças à fortaleza da sua fé.

A crise de Moisés manifesta-se na falta de confiança em si mesmo: «Quem sou eu para ir ter com o faraó e fazer sair os filhos de Israel do Egito?» (Ex 3, 11); «eu não sou um homem dotado para falar (…), tenho a boca e a língua pesadas» (Ex 4, 10); «sou incircunciso de lábios» (Ex 6, 12.30). Por isso, tenta evitar a missão que Deus lhe confia: «Senhor, envia a mensagem pela mão de outro» (Ex 4, 13). Mas, por meio desta crise, Deus fez de Moisés o seu servo, que guiou o povo para fora do Egito.

Elias, o profeta tão forte que foi comparado ao fogo (cf. Sir 48, 1), num momento de grande crise até desejou a morte, mas depois experimentou a presença de Deus, não no vento impetuoso, nem no tremor de terra, nem no fogo, mas no «murmúrio duma brisa suave» (cf. 1 Rs 19, 11-12). A voz de Deus nunca é a voz rumorosa da crise, mas é o murmúrio que nos fala dentro da própria crise.

João Baptista sente-se acabrunhado pela dúvida sobre a identidade messiânica de Jesus (cf. Mt 11, 2-6), porque não Se apresenta como o justiceiro que ele talvez esperasse (cf. Mt 3, 11-12); mas é precisamente depois do facto da prisão de João que Jesus começa a pregar o Evangelho de Deus (cf. Mc 1, 14).

E ainda a crise teológica de Paulo de Tarso: abalado pelo deslumbrante encontro com Cristo no caminho de Damasco (cf. At 9, 1-19; Gal 1, 15-16), é impelido a deixar as suas seguranças para seguir Jesus (cf. Flp 3, 4-10). São Paulo foi verdadeiramente um homem que se deixou transformar pela crise e, por isso, foi o artífice daquela crise que impeliu a Igreja a sair do recinto de Israel para chegar aos confins da terra.

Poderíamos prolongar a lista de personagens bíblicos – há tantos – e cada um de nós poderia encontrar nela o seu lugar.

Mas a crise mais eloquente é a de Jesus: os evangelhos sinópticos destacam que inaugura a sua vida pública com a experiência da crise vivida nas tentações. Embora o protagonista desta situação possa parecer o diabo com as suas falsas propostas, todavia o verdadeiro protagonista é o Espírito Santo; é Ele, de facto, quem conduz Jesus neste momento decisivo da sua vida: «O Espírito conduziu Jesus ao deserto, a fim de ser tentado pelo diabo» (Mt 4, 1).

Os evangelistas evidenciam que os quarenta dias vividos por Jesus no deserto estão marcados pela experiência da fome e da fragilidade (cf. Mt 4, 2; Lc 4, 2). E é precisamente no mais fundo desta fome e desta fragilidade que o maligno tenta jogar o seu trunfo, aproveitando-se da humanidade cansada de Jesus. Mas, naquele homem provado pelo jejum, o Tentador experimenta a presença do Filho de Deus que sabe vencer a tentação por meio da Palavra de Deus, não com a palavra própria. Jesus nunca dialoga com o diabo, nunca! E isto é uma lição para nós: com o diabo nunca se dialoga. Jesus expulsa-o ou obriga-o a manifestar o seu nome; mas com o diabo, nunca se dialoga.

Depois Jesus enfrentou uma crise indescritível no Getsémani: solidão, medo, angústia, a traição de Judas e o abandono dos Apóstolos (cf. Mt 26, 36-50). Por fim, vem a crise extrema na cruz: a solidariedade com os pecadores até ao ponto de Se sentir abandonado pelo Pai (cf. Mt 27, 46). Apesar disso, é com plena confiança que entregou o seu espírito nas mãos do Pai (cf. Lc 23, 46). E este seu abandono total e confiante abriu o caminho da ressurreição (cf. Heb 5, 7).

6. Irmãos e irmãs, esta reflexão sobre a crise alerta para não julgarmos precipitadamente a Igreja com base nas crises causadas pelos escândalos de ontem e de hoje, como fez o profeta Elias que, desabafando com o Senhor, Lhe apresentou uma descrição da realidade sem esperança: «Ardo em zelo pelo Senhor, Deus do universo, porque os filhos de Israel abandonaram a tua aliança, derrubaram os teus altares e mataram os teus profetas. Só eu escapei; mas agora também me querem matar a mim» (1 Rs 19, 14). E quantas vezes também as nossas análises eclesiais parecem descrições sem esperança. Uma leitura da realidade sem esperança não se pode chamar realista. A esperança dá às nossas análises aquilo que muitas vezes o nosso olhar míope é incapaz de captar. Deus responde a Elias que a realidade não é assim como ele a percebeu: «Vai e volta pelo caminho do deserto em direção a Damasco (…), deixarei com vida em Israel sete mil homens que não ajoelharam perante Baal e cujos lábios o não beijaram» (1 Rs 19, 15.18). Não é verdade que o profeta está esteja sozinho: está em crise.

Deus continua a fazer germinar as sementes do seu Reino no meio de nós. Aqui, na Cúria, muitos são os que dão testemunho com o trabalho humilde, discreto, sem murmurações, silencioso, leal, profissional, honesto. São muitos, no vosso meio... Obrigado! O nosso tempo também tem os seus problemas, mas possui igualmente o testemunho vivo de que o Senhor não abandonou o seu povo, com a única diferença de que os problemas vão parar imediatamente aos jornais –sucede isto todos os dias –, enquanto os sinais de esperança fazem notícia só depois de muito tempo e… nem sempre.

Quem não olha a crise à luz do Evangelho limita-se a fazer a autópsia dum cadáver: olha a crise, mas sem a esperança do Evangelho, sem a luz do Evangelho. Estamos assustados com a crise não só porque nos esquecemos de a avaliar como o Evangelho nos convida a fazê-lo, mas também porque olvidamos que o Evangelho é o primeiro a colocar-nos em crise.[2] É o Evangelho que nos coloca em crise. Mas, se reencontrarmos a coragem e a humildade de dizer em voz alta que o tempo da crise é um tempo do Espírito, então, mesmo no meio da experiência da escuridão, da fraqueza, da fragilidade, das contradições, da confusão, já não nos sentiremos esmagados, mas conservaremos sempre a confiança íntima de que as coisas estão prestes a assumir uma forma nova, nascida exclusivamente da experiência duma graça escondida na escuridão. «Porque no fogo se prova o ouro; e os eleitos de Deus, no cadinho da humilhação» (Sir 2, 5).

7. Por fim, gostaria de vos exortar a não confundir a crise com o conflito. São duas coisas distintas… A crise geralmente tem um desfecho positivo, enquanto o conflito cria sempre um contraste, uma competição, um antagonismo aparentemente sem solução, entre sujeitos que se dividem em amigos a amar e inimigos a combater, com a consequente vitória de uma das partes.

A lógica do conflito sempre busca os «culpados» a estigmatizar e desprezar e os «justos» a justificar, a fim de introduzir a noção – muitas vezes mágica – de que esta ou aquela situação nada tem a ver connosco. Esta perda do sentido duma pertença comum favorece o crescimento ou a afirmação de certas atitudes elitistas e de «grupos fechados» que promovem lógicas restritivas e parciais, que empobrecem a universalidade da nossa missão. «Quando paramos na conjuntura conflitual, perdemos o sentido da unidade profunda da realidade» (Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 226).

Lida com as categorias de conflito – direita e esquerda, progressista e tradicionalista –, a Igreja divide-se, polariza-se, perverte-se e atraiçoa a sua verdadeira natureza: é um Corpo perenemente em crise, precisamente porque está vivo, mas não deve tornar-se jamais um Corpo em conflito com vencedores e vencidos, pois deste modo semeará temor, tornar-se-á mais rígida, menos sinodal, e imporá uma lógica uniforme e uniformizadora, muito distante da riqueza e pluralidade que o Espírito deu à sua Igreja.

A novidade introduzida pela crise querida pelo Espírito nunca é uma novidade em contraposição ao antigo, mas uma novidade que germina do antigo e o torna sempre fecundo. Jesus usa uma frase que expressa esta passagem de forma simples e clara: «Se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, dá muito fruto» (Jo 12, 24). O ato de morrer da semente é ambivalente, porque assinala simultaneamente o fim dalguma coisa e o início doutra. Ao mesmo momento chamamos morte-apodrecer e nascimento-germinar, porque são a mesma coisa: diante dos nossos olhos, vemos um fim e, ao mesmo tempo, naquele fim manifesta-se um novo início.

Neste sentido, todas as resistências que fazemos ao entrar em crise, deixando-nos conduzir pelo Espírito no tempo da prova, condenam-nos a ficar sós e estéreis, no máximo em conflito. Defendendo-nos da crise, obstaculizamos a obra da graça de Deus, que quer manifestar-se em nós e por meio de nós. Por isso, se um certo realismo nos mostra a nossa história recente apenas como a soma de tentativas, nem sempre bem-sucedidas, de escândalos, quedas, pecados, de contradições, de curtos-circuitos no testemunho, não devemos assustar-nos, nem negar a evidência de tudo aquilo que em nós e nas nossas comunidades é afetado pela morte e precisa de conversão. Tudo aquilo que de mau, contraditório, fraco e frágil se manifesta abertamente, lembra-nos ainda mais intensamente a necessidade de morrer para um modo de ser, raciocinar e agir que não reflete o Evangelho. Só morrendo para uma certa mentalidade é que conseguiremos também abrir espaço à novidade que o Espírito suscita constantemente no coração da Igreja. Bem cientes disto estavam os Padres da Igreja, apelando continuamente à metanoia.

8. Subjacente a cada crise, há sempre uma justa exigência de atualização: é um passo em frente. Mas se quisermos de verdade uma atualização, devemos ter a coragem duma disponibilidade sem limites; há que deixar de pensar na reforma da Igreja como remendo dum vestido velho ou mera redação duma nova constituição apostólica. A reforma da Igreja é outra coisa.

Não se trata de «remendar uma peça de vestuário», porque a Igreja não é simples «vestido» de Cristo, mas o seu Corpo que abraça a história inteira (cf. 1 Cor 12, 27). Somos chamados, não a mudar ou reformar o Corpo de Cristo – «Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e pelos séculos» (Heb 13, 8) –, mas a revestir com um vestido novo aquele mesmo Corpo, a fim de que resulte claramente que a graça possuída não vem de nós, mas de Deus: de facto, «trazemos este tesouro em vasos de barro, para que se veja que este extraordinário poder é de Deus e não é nosso» (2 Cor 4, 7). A Igreja é sempre um vaso de barro, precioso pelo que contém e não pelo que às vezes mostra de si mesma. No fim, terei o prazer de vos dar um livro, um presente de Padre Ardura, onde se mostra a vida dum vaso de barro, que fez brilhar a grandeza de Deus e as reformas da Igreja. Este é um tempo em que parece evidente que o barro de que fomos feitos está lascado, rachado, partido. Temos de esforçar-nos por que a nossa fragilidade não se torne obstáculo ao anúncio do Evangelho, mas lugar onde se manifeste o grande amor com que Deus, rico em misericórdia, nos amou e continua a amar (cf. Ef 2, 4). Se riscássemos Deus, rico em misericórdia, da nossa vida, esta seria uma farsa, uma mentira.

Durante o período da crise, Jesus acautela-nos dalgumas tentativas de sair dela que, à partida, estão condenadas ao fracasso, como aquela que «recorta um bocado de roupa nova para o deitar em roupa velha»; o resultado é previsível: ficará rasgada a nova e, «à roupa velha, não se ajustará bem o remendo que vem da nova». Da mesma forma, «ninguém deita vinho novo em odres velhos; se o fizer, o vinho novo rompe os odres e derrama-se, e os odres ficarão perdidos. Mas deve deitar-se o vinho novo em odres novos» (Lc 5, 36-38).

O comportamento correto é o do «doutor da Lei instruído acerca do Reino dos céus [que] é semelhante a um pai de família, que tira coisas novas e antigas do seu tesouro» (Mt 13, 52). O tesouro é a Tradição; esta, como recordava Bento XVI, «é o rio vivo que nos liga às origens, o rio vivo no qual as origens estão sempre presentes. O grande rio que nos conduz ao porto da eternidade (Catequese, 26/IV/2006). Isto traz-me ao pensamento a frase daquele grande musicista alemão: «A tradição é a salvaguarda do futuro e não um museu, guardião das cinzas». São «coisas antigas» a verdade e a graça que já possuímos. As «coisas novas» são os vários aspetos da verdade que pouco a pouco vamos compreendendo. Aquela frase do século V «ut annis scilicet consolidetur, dilatetur tempore, sublimetur aetate – fortalece-se com o decorrer dos anos, desenvolve-se com o andar dos tempos, cresce através das idades» define o que é a tradição; por isso cresce. Nenhuma modalidade histórica de viver o Evangelho esgota a sua compreensão. Se nos deixarmos guiar pelo Espírito Santo, iremos dia após dia aproximando-nos cada vez mais da «Verdade completa» (Jo 16, 13). Ao contrário, sem a graça do Espírito Santo, pode-se até começar a conceber a Igreja de forma sinodal, mas, em vez de se referir à comunhão com a presença do Espírito Santo, chega a ser concebida como qualquer assembleia democrática composta por maiorias e minorias, por exemplo, como um Parlamento; e a sinodalidade não é isto. Só a presença do Espírito Santo fará a diferença.

9. Como comportar-nos na crise? Antes de mais nada, aceitá-la como um tempo de graça que nos foi dado para compreender a vontade de Deus sobre cada um de nós e a Igreja inteira. É preciso entrar na lógica, aparentemente contraditória, de que, «quando sou fraco, então é que sou forte» (2 Cor 12, 10). Tenha-se presente a garantia dada por São Paulo aos Coríntios: «Deus é fiel e não permitirá que sejais tentados acima das vossas forças, mas, com a tentação, vos dará os meios de sair dela e a força para a suportar» (1 Cor 10, 13).

Ponto fundamental é não interromper o diálogo com Deus, mesmo que seja cansativo. Rezar não é fácil. Não devemos cansar-nos de rezar sempre (cf. Lc 21, 36; 1 Ts 5, 17). Não conhecemos outra solução para os problemas que estamos a viver, senão a de rezar mais e, ao mesmo tempo, fazer tudo o que nos for possível com mais confiança. A oração permitir-nos-á ter «esperança, para além do que se podia esperar» (Rm 4, 18).

10. Amados irmãos e irmãs, conservemos uma grande paz e serenidade, plenamente conscientes de que todos nós, a começar por mim, somos apenas «servos inúteis» (Lc 17, 10), com quem usou de misericórdia o Senhor. Por isso, seria bom se deixássemos de viver em conflito e voltássemos a sentir-nos a caminho, abertos à crise. O caminho sempre tem a ver com os verbos de movimento. A crise é movimento, faz parte do caminho. Ao contrário, o conflito é um caminho fictício, é um girovagar sem motivo nem finalidade, é permanecer no labirinto, é só desperdício de energias e ocasião de mal. E o primeiro mal a que nos leva o conflito e do qual devemos procurar fugir, é a murmuração. Tenhamos cuidado com isto! Falar contra a murmuração não é uma mania minha; é a denúncia dum mal que entra na Cúria; aqui, no Palácio, há muitas portas e janelas que lhe dão entrada e habituamo-nos a isto, à maledicência, que nos fecha na mais triste, desagradável e sufocante autorreferencialidade e transforma toda a crise em conflito. Narra o Evangelho que os pastores acreditaram no anúncio do Anjo e puseram-se a caminho para ir ver Jesus (cf. Lc 2, 15-16). Ao contrário, Herodes fecha-se diante da narração dos Magos e transformou este seu fechamento em mentira e violência (cf. Mt 2, 1-16).

Cada um de nós, independentemente do lugar que ocupa na Igreja, interrogue-se se quer seguir Jesus com a docilidade dos pastores ou com a autoproteção de Herodes, segui-Lo na crise ou defender-se d’Ele no conflito.

Permiti que vos peça expressamente, a todos vós que me acompanhais no serviço do Evangelho, esta prenda de Natal: a vossa colaboração generosa e apaixonada no anúncio da Boa Nova sobretudo aos pobres (cf. Mt 11, 5). Lembremo-nos que só conhece verdadeiramente a Deus quem acolhe o pobre que vem de baixo com a sua miséria e que, precisamente nestas vestes, é enviado do Alto; não podemos ver o rosto de Deus, mas podemos experimentá-lo ao olhar para nós quando honramos o rosto do próximo, do outro que nos ocupa com as suas necessidades.[3] O rosto dos pobres. Os pobres são o centro do Evangelho. E recordo o que dizia aquele santo bispo brasileiro: «Quando me ocupo dos pobres, dizem de mim que sou um santo; mas, quando me pergunto e lhes pergunto: “Porquê tanta pobreza?”, chamam-me “comunista”».

Não haja ninguém que dificulte voluntariamente a obra que o Senhor está a realizar neste momento, e peçamos o dom da humildade do serviço a fim de que Ele cresça e nós diminuamos (cf. Jo 3, 30).

Boas-festas a todos, a cada um de vós, às vossas famílias e aos vossos amigos. E obrigado! Obrigado pelo vosso trabalho. Muito obrigado! E, por favor, rezai sempre por mim, para que tenha a coragem de permanecer em crise. Feliz Natal! Obrigado!

[Bênção]

Esqueci-me de dizer que vos darei, de prenda, dois livros. Um é a vida de Carlos de Foucauld, um Mestre da crise, que nos deixou um dom, um legado belíssimo. Trata-se duma oferta que me fez o Padre Ardura: obrigado! O outro intitula-se «Holotropia: os verbos da familiaridade cristã»; servem para ajudar a viver a nossa vida. É um livro publicado nestes dias, escrito por um biblista, discípulo do Cardeal Martini; trabalhou em Milão, mas é da diocese de Albenga-Imperia.

 

[1] Hanna Arendt, The Human Condition (Universidade de Chicago 1958), traduzido em italiano: Vita activa. La condizione umana (Bompiani – Milão 1994), 182.

[2] «Depois de O ouvirem, muitos dos seus discípulos disseram: “Que palavras insuportáveis! Quem pode entender isto?” Mas Jesus, sabendo no seu íntimo que os seus discípulos murmuravam a respeito disto, disse-lhes: “Isto escandaliza-vos?”» (Jo 6, 60-61). Mas somente a partir desta crise é que pôde nascer esta profissão de fé: «A quem iremos nós, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna» (Jo 6, 68).

[3] Cf. E. Levinas, Totalité et infini (Paris 2000), 76.

 



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