CARTA DO PAPA JOÃO PAULO II
AOS SACERDOTES POR OCASIÃO
DA QUINTA-FEIRA SANTA 1996
Amados Irmãos no sacerdócio!
«Consideremos (...), irmãos, a nossa vocação» (cf. 1 Cor 1, 26). O sacerdócio é uma vocação, uma vocação particular: «Ninguém se atribua esta honra, senão o que for chamado por Deus» (Heb 5, 4). A Carta aos Hebreus refere-se ao sacerdócio do Antigo Testamento, mas para iniciar na compreensão do mistério de Cristo Sacerdote: «Cristo não Se atribuiu a glória de tornar-Se sumo sacerdote, mas recebeu-a d'Aquele que Lhe disse: (...) Tu és sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedec» (5, 5.6).
1. Cristo, Filho consubstancial ao Pai, é constituído sacerdote da Nova Aliança segundo a ordem de Melquisedec: portanto, também Ele é chamado ao sacerdócio. É o Pai que «chama» o próprio Filho – Filho por Ele gerado num acto de amor eterno – , para que «entre no mundo» (cf. Heb 10, 5) e Se faça homem. Quer que o seu Filho unigénito, encarnando-Se, Se torne «sacerdote para sempre»: o único sacerdote da nova e eterna Aliança. Na vocação do Filho ao sacerdócio, exprime-se a profundidade do mistério trinitário. Na verdade, só o Filho – o Verbo do Pai, no qual e pelo qual tudo foi criado – pode incessantemente oferecer em sacrifício ao Pai a criação, confirmando que tudo quanto foi criado provém do Pai e deve tornar-se uma oferta de louvor ao Criador. Deste modo, o mistério do sacerdócio encontra o seu início na Trindade e, ao mesmo tempo, é consequência da Encarnação. Fazendo-Se homem, o Filho unigénito e eterno do Pai nasce de uma mulher, entra na ordem da criação e torna-Se assim sacerdote, o único e eterno sacerdote.
O autor da Carta aos Hebreus assinala que o sacerdócio de Cristo está ligado ao sacrifício da Cruz: «Cristo veio como sumo sacerdote dos bens futuros, através de um tabernáculo mais excelente e mais perfeito, que não é construído pela mão do homem, isto é, que não pertence a esta criação. Entrou uma vez por todas no Santuário, (...) com o próprio sangue, tendo obtido uma redenção eterna» (9, 11-12). O sacerdócio de Cristo radica-se na obra da redenção. Cristo é sacerdote do próprio sacrifício: «Por um Espírito eterno, ofereceu-Se a Si mesmo a Deus, como vítima sem mancha» (Heb 9, 14). O sacerdócio da Nova Aliança, ao qual somos chamados na Igreja, constitui, por isso mesmo, uma participação neste sacerdócio singular de Cristo.
2. O Concílio Vaticano II apresenta o conceito de «vocação», em toda a sua amplitude. Efectivamente, fala de vocação do homem, vocação cristã, vocação à vida conjugal e familiar. Neste contexto, o sacerdócio constitui uma das vocações, uma das formas possíveis de realização do seguimento de Cristo, que várias vezes, no Evangelho, dirige o convite: «Segue-Me».
Na Constituição dogmática sobre a Igreja, Lumen gentium, o Concílio ensina que todos os baptizados participam do sacerdócio de Cristo; ao mesmo tempo, porém, distingue claramente o sacerdócio do povo de Deus, comum a todos os fiéis, do sacerdócio hierárquico, ou seja, ministerial. Vale a pena, a propósito disto, transcrever integralmente um trecho expressivo do citado documento conciliar: «Cristo Nosso Senhor, Pontífice escolhido de entre os homens (cf. Heb 5, 1-5), fez do novo povo um 'reino sacerdotal para seu Deus e Pai' (Ap 1, 6; cf.5, 9-10). Na verdade, os baptizados, pela regeneração e pela unção do Espírito Santo, são consagrados para serem casa espiritual, sacerdócio santo, para que, por meio de todas as obras próprias do cristão, ofereçam oblações espirituais e anunciem os louvores d'Aquele que das trevas os chamou à sua luz admirável (cf. 1 Ped 2, 4-10). Por isso, todos os discípulos de Cristo, perseverando na oração e louvando a Deus (cf. Act 2, 42-47), ofereçam-se a si mesmos como hóstias vivas, santas, agradáveis a Deus (cf. Rom 12, 1), dêem testemunho de Cristo em toda a parte e, àqueles que lha pedirem, dêem razão da esperança da vida eterna que neles habita (cf. 1 Ped 3, 15). O sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial ou hierárquico, embora se diferenciem essencialmente e não apenas em grau, ordenam-se mutuamente um ao outro; pois um e outro participam, a seu modo, do único sacerdócio de Cristo. Com efeito, o sacerdócio ministerial, pelo seu poder sagrado, forma e conduz o povo sacerdotal, realiza o sacrifício eucarístico fazendo as vezes de Cristo e oferece-o a Deus em nome de todo o povo; os fiéis, por sua parte, concorrem para a oblação da Eucaristia em virtude do seu sacerdócio real, que eles exercem na recepção dos sacramentos, na oração e acção de graças, no testemunho da santidade de vida, na abnegação e na caridade operosa».
O sacerdócio ministerial está ao serviço do sacerdócio comum dos fiéis. De facto, quando o sacerdote celebra a Eucaristia e administra os sacramentos, torna os fiéis conscientes da sua peculiar participação no sacerdócio de Cristo.
3. Deste modo, fica claro que a vocação sacerdotal constitui, no âmbito mais vasto da vocação cristã, um chamamento específico. E isto está de acordo, de modo geral, com a nossa experiência pessoal de sacerdotes: recebemos o baptismo e a confirmação; participámos na catequese, nas celebrações litúrgicas e sobretudo na Eucaristia. A nossa vocação ao sacerdócio desabrochou no contexto da vida cristã.
Todavia, cada vocação ao sacerdócio tem a sua história individual, relacionada com momentos bem precisos da vida de cada um. Quando chamava os Apóstolos, Cristo dizia a cada um: «Segue-Me!» (Mt 4, 19; 9, 9; Mc 1, 17; 2, 14; Lc 5, 27; Jo 1, 43; 21, 19). Desde há dois mil anos que Ele continua a dirigir o mesmo convite a tantos homens, particularmente aos jovens. Às vezes chama de modo surpreendente, embora nunca se trate de um chamamento totalmente inesperado. Mas, habitualmente, o convite de Cristo a segui-l'O é preparado num longo período de tempo. Presente já na consciência do adolescente, ainda que ofuscado depois pela indecisão ou pela solicitação a seguir outras estradas, quando o convite volta a fazer-se ouvir não constitui uma surpresa. Por isso, não é caso para maravilhar-se, se precisamente esta vocação foi a que prevaleceu sobre as outras, acabando o jovem por tomar o caminho que lhe foi indicado por Cristo: deixa a família e vai começar a preparação específica para o sacerdócio.
Existe uma tipologia da vocação, a que desejo agora acenar. Temos um esboço dela no Novo Testamento. Com o seu «segue-Me!», Cristo dirige-Se a diferentes pessoas: temos pescadores como Pedro ou os filhos de Zebedeu (cf. Mt 4, 19. 22), mas há também Levi, um publicano, depois chamado Mateus. Em Israel, a profissão de cobrador de impostos era considerada pecaminosa e merecedora de desprezo; e, no entanto, Cristo chama para o grupo dos Apóstolos precisamente um publicano (cf. Mt 9, 9). Mas maior espanto desperta certamente o chamamento de Saulo de Tarso (cf. Act 9, 1-19), conhecido e temido perseguidor dos cristãos, que nutria um ódio de morte contra o nome de Jesus. Pois foi exactamente este fariseu, o chamado no caminho de Damasco: o Senhor quer fazer dele «um instrumento privilegiado», que muito haveria de sofrer pelo seu nome (cf. Act 9, 15-16).
Cada um de nós, sacerdotes, se reconhece pessoalmente nesta original tipologia evangélica da vocação; ao mesmo tempo, porém, sabe que a história da sua vocação, o caminho ao longo do qual Cristo o conduz durante toda a existência, é em certo sentido irrepetível.
Queridos Irmãos no sacerdócio, devemos frequentemente deter-nos a rezar, meditando no mistério da nossa vocação, com o coração repleto de encanto e gratidão para com Deus por dom tão inefável.
4. A imagem da vocação, que os Evangelhos nos transmitem, está particularmente ligada à figura do pescador. Jesus chamou para junto d'Ele alguns pescadores da Galileia, entre os quais Simão Pedro, e definiu a missão apostólica aludindo à profissão deles. Depois da pesca miraculosa, quando Pedro se lançou aos pés de Jesus exclamando: «Afasta-Te de mim, Senhor, porque sou um homem pecador!», Cristo respondeu: «Não tenhas receio; doravante serás pescador de homens» (Lc 5, 8.10).
Pedro e os outros Apóstolos viviam junto de Jesus e com Ele percorriam as estradas da sua missão. Ouviam as palavras que Ele pronunciava, admiravam as suas obras, maravilhavam-se com os milagres que realizava. Sabiam que Jesus era o Messias, mandado por Deus para indicar o caminho da salvação a Israel e à humanidade inteira. Mas a sua fé devia passar através daquele misterioso acontecimento salvífico, que Ele preanunciara várias vezes: «O Filho do Homem vai ser entregue às mãos dos homens, que O matarão; mas, ao terceiro dia, ressuscitará» (Mt 17, 22-23). Tudo isto se realizou com a sua morte e ressurreição, nos dias que a Liturgia chama Triduum Sacrum.
Precisamente durante esse acontecimento pascal, Cristo revelou aos Apóstolos que a sua vocação consistia em tornarem-se sacerdotes como Ele e n'Ele. Sucedeu isso no Cenáculo, quando, na véspera da sua morte na cruz, Ele tomou o pão e depois o cálice com o vinho, pronunciando sobre eles as palavras da consagração. O pão e o vinho tornaram-se o seu Corpo e o seu Sangue, oferecidos em sacrifício pela humanidade inteira. Jesus concluiu este gesto, ordenando aos Apóstolos: «Fazei isto em memória de Mim» (1 Cor 11, 25). Com estas palavras, confiou-lhes o seu próprio sacrifício e, através das mãos deles, transmitiu-o à Igreja de todos os tempos. Ao confiar o Memorial do seu sacrifício aos Apóstolos, Cristo tornou-os também participantes do seu sacerdócio. Na verdade, existe um laço estreito e indissolúvel entre a oferta e o sacerdote: aquele que oferece o sacrifício de Cristo deve ter parte no sacerdócio de Cristo. A vocação ao sacerdócio é, pois, uma vocação a oferecer in persona Christi o sacrifício, em virtude da participação no seu sacerdócio. Foi dos Apóstolos que herdámos o ministério sacerdotal.
5. «O Mestre está cá e chama-te» (Jo 11, 28). Estas palavras podem-se aplicar à vocação sacerdotal. O chamamento de Deus está na origem do caminho, que o homem há-de cumprir na vida: esta é a dimensão primária e fundamental da vocação, mas não a única. Na verdade, com a ordenação sacerdotal tem início um caminho que se prolonga até à morte, sendo todo ele um itinerário «vocacional». O Senhor chama os presbíteros às diversas funções e ministérios, gerados de tal vocação. Mas há um nível ainda mais profundo: por detrás das funções que são a expressão do ministério sacerdotal, permanece sempre, na base de tudo, a própria realidade do «ser sacerdote». As situações e as circunstâncias da vida convidam incessantemente o sacerdote a confirmar a sua opção originária, a responder sempre e de novo ao chamamento de Deus. A nossa vida sacerdotal, como toda a existência cristã autêntica, é uma sucessão de respostas a Deus que chama.
Emblemática é, a este propósito, a parábola dos servos que aguardam o regresso do seu senhor. Visto que este tarda, eles devem estar alerta para, à sua chegada, serem encontrados vigilantes (cf. Lc 12, 35-40). Não poderia esta vigilância evangélica ser outra definição da resposta à vocação? Com efeito, esta cumpre-se mercê de um atento sentido de responsabilidade. Cristo sublinha: «Felizes os servos que o senhor, à sua chegada, encontrar vigilantes. (...) E se vier na segunda ou na terceira vigília e assim os encontrar, felizes serão eles!» (Lc 12, 37.38).
Os presbíteros da Igreja latina assumem o compromisso de viver no celibato. Se a vocação é vigilância, um aspecto significativo desta última é certamente a fidelidade a tal compromisso durante a existência inteira. O celibato, todavia, constitui apenas uma das dimensões da vocação, que se realiza, ao longo do caminho da vida, no contexto de um empenho global com as múltiplas funções que derivam do sacerdócio.
A vocação não é realidade estática: possui uma dinâmica própria. Queridos Irmãos no sacerdócio, nós confirmamos e realizamos cada vez mais a nossa vocação, na medida em que vivemos fielmente o «mysterium» da aliança de Deus com o homem e, de modo particular, o «mysterium» da Eucaristia; realizamos a vocação, na medida em que, com crescente intensidade, amamos o sacerdócio e o ministério sacerdotal, que somos chamados a desempenhar. Descobrimos então que é no ser sacerdotes que nos «realizamos» a nós mesmos, corroborando a autenticidade da nossa vocação, segundo o desígnio singular e eterno de Deus para cada um de nós. Este projecto divino concretiza-se na medida em que é reconhecido e assumido por nós, como nosso projecto e programa de vida.
6. Gloria Dei vivens homo: estas palavras de Santo Ireneu unem profundamente a glória de Deus à auto-realização do homem. «Non nobis, Domine, non nobis, sed nomini tuo da gloriam» (Sal 115/113 B, 1): repetindo muitas vezes estas palavras do Salmista, damo-nos conta de que o «realizar-se a si mesmo» na vida tem um ponto de referência e um fim transcendentes, contidos no conceito «glória de Deus»: a nossa vida é chamada a tornar-se officium laudis.
A vocação sacerdotal é um chamamento especial ao «officium laudis». Quando o sacerdote celebra a Eucaristia, quando na Penitência comunica o perdão de Deus, quando administra os outros sacramentos, sempre dá louvor a Deus. Por isso, é preciso que o sacerdote ame a glória do Deus vivo e proclame, juntamente com a comunidade dos crentes, a glória divina, que resplandece na criação e na redenção. O sacerdote é chamado a unir-se, de modo particular, com Cristo, Verbo eterno e Homem verdadeiro, Redentor do mundo: na redenção, de facto, manifesta-se a plenitude da glória que a humanidade e a criação inteira rendem ao Pai em Jesus Cristo.
Officium laudis não são apenas as palavras do Saltério, os hinos litúrgicos, os cânticos do Povo de Deus, entoados na presença do Criador em tantas línguas diversas; officium laudis é sobretudo a descoberta incessante da verdade, do bem e da beleza, que o mundo recebe em dom do Criador, e é simultaneamente a descoberta do sentido da existência humana. O mistério da redenção cumpriu e revelou plenamente este sentido, aproximando a vida do homem à vida de Deus. A redenção, actuada de forma definitiva no mistério pascal por meio da paixão, morte e ressurreição de Cristo, não só revela a santidade transcendente de Deus, mas revela também, como ensina o Concílio Vaticano II, «o homem a si mesmo».
A glória de Deus está inscrita na ordem da criação e da redenção; o sacerdote é chamado a viver este mistério em toda a sua profundidade, para participar no grande officium laudis que incessantemente se realiza no universo. Só vivendo profundamente a verdade da redenção do mundo e do homem, é que ele poderá aproximar-se dos sofrimentos e problemas das pessoas e das famílias, e afrontar também a realidade do mal e do pecado, sem temor e com as energias espirituais necessárias para a superar.
7. Gloria Dei vivens homo. O sacerdote, cuja vocação é dar glória a Deus, está, ao mesmo tempo, marcado profundamente pela verdade contida na segunda parte da expressão de Santo Ireneu: vivens homo. O amor pela glória de Deus não afasta o sacerdote da vida e de tudo o que a compõe; pelo contrário, a sua vocação leva-o a descobrir o pleno significado daquela.
Que quer dizer vivens homo? Significa o homem na plenitude da sua verdade: o homem criado por Deus à sua imagem e semelhança; o homem a quem Deus confiou a terra para que a dominasse; o homem distinguido com uma multiforme riqueza de natureza e de graça; o homem livre da escravidão do pecado e elevado à dignidade de filho adoptivo de Deus.
Este é o homem e a humanidade que o sacerdote tem diante dele, quando celebra os mistérios divinos: desde o recém-nascido que os pais trazem ao baptismo, às crianças e adolescentes que encontra na catequese ou na aula de religião. E depois os jovens, que, no período mais delicado da vida, escolhem a sua estrada, a própria vocação, e se preparam para formar novas famílias ou então consagrar-se por amor do Reino de Deus, entrando no Seminário ou num Instituto de vida consagrada. É preciso que o sacerdote esteja muito perto dos jovens. Nesta fase da vida, dirigem-se muitas vezes a ele, procurando o conforto de um conselho, o apoio da oração, um sábio acompanhamento vocacional. Deste modo, o sacerdote pode constatar quanto é aberta e dedicada às pessoas a sua vocação. Aproximando-se dos jovens, ele encontra futuros pais e mães de família, futuros profissionais ou, de qualquer modo, pessoas que poderão contribuir com as suas próprias capacidades, para a edificação da sociedade de amanhã. Cada uma destas várias vocações passa através do seu coração sacerdotal e manifesta-se como um caminho particular ao longo do qual Deus guia as pessoas e leva-as a encontrarem-se com Ele.
O sacerdote torna-se, assim, participante de tantas decisões da vida, de sofrimentos e alegrias, de esperanças e desilusões. Em cada situação, a sua função é mostrar Deus ao homem, como o fim último da sua existência pessoal. O sacerdote torna-se aquele a quem as pessoas confiam as coisas mais íntimas e os seus segredos, por vezes tão dolorosos. Torna-se o desejado dos enfermos, dos idosos e dos moribundos, cientes de que só ele, enquanto participante do sacerdócio de Cristo, os pode ajudar no último transe que os há-de conduzir a Deus. O sacerdote, testemunha de Cristo, é mensageiro da vocação suprema do homem à vida eterna em Deus. E enquanto acompanha os irmãos, prepara-se a si mesmo: o exercício do ministério permite-lhe aprofundar a sua própria vocação de dar glória a Deus para tomar parte na vida eterna. Encaminha-se assim para o dia em que Cristo lhe dirá: «Muito bem, servo bom e fiel, (...) entra no gozo do teu senhor» (Mt 25, 21).
8. «Considerai (...), irmãos, a vossa vocação» (1Cor 1, 26). Esta exortação de Paulo aos cristãos de Corinto assume um significado particular para nós, sacerdotes. Havemos de «considerar» frequentemente a nossa vocação, redescobrindo o seu sentido e a sua grandeza, que sempre nos ultrapassam. Ocasião privilegiada para isso é Quinta-feira Santa, o dia comemorativo da instituição da Eucaristia e do sacramento do sacerdócio. São também ocasião propícia os aniversários da Ordenação sacerdotal e, especialmente, os jubileus sacerdotais.
Queridos Irmãos sacerdotes, ao partilhar convosco estas reflexões, penso no cinquentenário da minha Ordenação sacerdotal que este ano se cumpre. Penso nos meus companheiros de Seminário que tiveram, como eu, de superar um caminho para o sacerdócio, condicionado pelo período dramático da segunda guerra mundial. Então, os Seminários estavam fechados e os seminaristas viviam na diáspora. Alguns deles perderam a vida durante os combates. O sacerdócio alcançado naquelas condições adquiriu para nós um valor particular. Permanece vivo na memória aquele grande momento de há cinquenta anos, quando a Assembleia invocava o «Veni Creator Spiritus» sobre nós, jovens Diáconos, prostrados por terra ao centro do templo, antes de receber a Ordenação sacerdotal pela imposição das mãos do Bispo. Damos graças ao Espírito Santo por aquela infusão de graça que marcou a nossa existência. E continuamos a implorar: «Imple superna gratia, quae tu creasti pectora».
Desejo convidar-vos, amados Irmãos no sacerdócio, a participardes no meu Te Deum de agradecimento pelo dom da vocação. Os jubileus, como sabeis, são momentos importantes na vida de um sacerdote: representam como que marcos miliários no caminho da nossa vocação. Segundo a tradição bíblica, o jubileu é tempo de alegria e de acção de graças. O lavrador dá graças ao Criador pelas colheitas; por ocasião dos nossos jubileus, nós queremos agradecer ao Pastor eterno os frutos da nossa vida sacerdotal, o serviço prestado à Igreja e à humanidade nos vários lugares da terra, nas condições mais díspares e nas múltiplas situações de trabalho, onde a Providência nos quis e guiou. Sabemos que somos «servos inúteis» (Lc 17, 10), mas sentimo-nos gratos ao Senhor porque quis fazer de nós seus ministros.
Sentimo-nos gratos também aos homens: primeiro, àqueles que nos ajudaram a chegar ao sacerdócio e a quantos a divina Providência colocou no caminho da nossa vocação. Agradecemos a todos, a começar pelos nossos pais, que foram para nós um dom multiforme de Deus: tantas e tão grandes riquezas de ensinamentos e bons exemplos nos transmitiram!
Ao mesmo tempo que damos graças, pedimos também perdão a Deus e aos irmãos pelas negligências e faltas, fruto da fraqueza humana. O jubileu, segundo a Sagrada Escritura, não podia ser apenas acção de graças pelas colheitas; comportava igualmente o perdão das dívidas. Por isso, imploramos a Deus misericordioso que nos perdoe as dívidas contraídas ao longo da vida e no exercício do ministério sacerdotal.
«Considerai (...), irmãos, a vossa vocação» - adverte-nos o Apóstolo. Estimulados pela sua palavra, «consideremos» o caminho percorrido até agora, durante o qual a nossa vocação se confirmou, aprofundou, consolidou. «Consideremos», para ganhar uma consciência mais clara da acção amorosa de Deus na nossa vida. Mas, ao mesmo tempo, não podemos esquecer os nossos irmãos no sacerdócio que não perseveraram no caminho encetado. Confiamo-los ao amor do Pai, enquanto asseguramos a nossa oração por cada um deles.
E assim, o «considerar» transforma-se, quase sem nos darmos conta, em oração. É nesta perspectiva que desejo convidar-vos, queridos Irmãos no sacerdócio, a unir-vos à minha acção de graças pelo dom da vocação e do sacerdócio.
9. «Te Deum laudamus,
Te Dominum confitemur...»
Nós Vos louvamos e bendizemos, ó Deus:
toda a terra Vos adora.
Nós, vossos ministros,
com as vozes dos Profetas e o coro dos Apóstolos,
Vos proclamamos Pai e Senhor da vida,
de cada forma de vida
que de Vós somente provém.
Reconhecemo-Vos, ó Trindade Santíssima,
como seio e início da nossa vocação:
Vós, Pai, desde a eternidade nos pensastes,
quisestes e amastes;
Vós, Filho, nos escolhestes e chamastes
para participar no vosso único
e eterno sacerdócio;
Vós, Espírito Santo, enchestes-nos
com os vossos dons
e consagrastes-nos com a vossa santa unção.
Vós, Senhor do tempo e da história,
colocastes-nos no limiar
do terceiro milénio cristão,
para sermos testemunhas da salvação,
por Vós operada em favor
de toda a humanidade.
Nós, Igreja que proclama
a vossa glória, Vos imploramos:
nunca venha a faltar sacerdotes santos
ao serviço do Evangelho;
ressoe solenemente em cada Catedral
e em cada ângulo do mundo
o hino «Veni Creator Spiritus».
Vinde, Espírito Criador!
Vinde suscitar novas gerações de jovens,
prontos a trabalhar na vinha do Senhor,
para espalhar o Reino de Deus
até aos últimos confins da terra.
E Vós, Maria, Mãe de Cristo,
que, aos pés da cruz, nos acolhestes
como filhos predilectos, com o apóstolo João,
continuai a velar pela nossa vocação.
A Vós confiamos os anos de ministério
que a Providência nos deixar ainda viver.
Permanecei ao nosso lado para nos guiar
pelas estradas do mundo,
ao encontro dos homens e mulheres,
que o vosso Filho redimiu com o seu Sangue.
Ajudai-nos a cumprir integralmente
a vontade de Jesus,
de Vós nascido para a salvação do homem.
Cristo, Vós sois a nossa esperança!
«In Te, Domine, speravi,
non confundar in aeternum».
Vaticano, 17 de Março - IV Domingo da Quaresma - do ano 1996, décimo oitavo de Pontificado.
JOÃO PAULO II
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